24 nov. 2023 21h30

A Ruiva

Cultura Teatro

Sinopse

A Companhia João Garcia Miguel e Teatro Estúdio Fontenova

Segundo “A Ruiva”, de Fialho de Almeida, “Em Tempo de Guerra” e “Histórias Maravilhosas da Tradição Popular Portuguesa”, de Ana de Castro Osório e notícias dispersas sobre a morte de Mariana Torres.

 

Março de 1911. Ana de Castro Osório embarca para o Brasil, para São Paulo, onde o seu marido acabara de ser indigitado cônsul. Fialho de Almeida vai a enterrar na vila alentejana de Cuba, decretando previamente que inscrevessem na sua pedra lapidar os dizeres: “Miando pouco, arranhando sempre e não temendo nunca”. Já a operária conserveira Mariana Torres leva um ‘balázio’ no peito, com direito a campa rasa, no cemitério da cidade que a viu tombar, Setúbal.
Ana. Sobre o seu nascimento não restam dúvidas: Mangualde, 18 de junho de 1872. Já o local da sua morte, a 23 de março de 1935, é disputado com unhas e dentes entre os historiógrafos de Setúbal e de Lisboa. Certo é que a sua passagem por Setúbal, onde casou com um poeta local, Paulino de Oliveira, depois de ter recusado o pedido nupcial de um poeta global, Camilo Pessanha, revirou aquela cidade de pantanas. Ou não tivesse sido ela a mais proeminente redatora do jornal de guerrilha sadino “O Radical”, em cujas páginas levou até às terras a Sul do Tejo o ideal feminista. Modernices de uma época onde se anuncia a própria… “modernidade”.
O direito das mulheres à educação, ao trabalho, à emancipação e ao divórcio, à segurança na viuvez e ao voto (nem por mero acaso até foi o Dr. Juiz seu pai que deferiu o requerimento que permitiu o recenseamento eleitoral de Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher portuguesa a participar num sufrágio eleitoral), passaram a ser palavras de ordem comuns na foz do rio Sado. À beira do qual levantou igualmente a ativista Ana de Castro Osório os alicerces da Lusitânia Editora e onde fundou a Escola Liberal de Setúbal. A semente estava deitada à terra.

Mariana. Já vinham de antes, dos últimos anos do regime monárquico português, mas é no pós-República que se intensificam em Setúbal as greves, a criação das associações de classe, os conflitos laborais, a revolta social. Esta é também a época de maior vigor na afirmação do pensamento feminista, com Ana de Castro Osório na linha de vanguarda pela “tomada de consciência”. Carregadores e condutores do sal, corticeiros, caixoteiros, pescadores, soldadores, sapateiros, pedreiros… entre 1910 e 1911 não houve classe proletária que não tivesse saído à rua por melhores jornas e contra a carestia de vida.
Principalmente os operários conserveiros setubalenses. Em março de 1911, durante uma greve que se arrastava há mais de um mês, agentes da recém-criada Guarda Nacional Republicana abriram fogo sobre a multidão que, em plena Avenida Luiza Todi, tentava impedir a exportação do peixe enlatado. Morreram dois manifestantes. Uma das balas letais calhou a Mariana Torres. “Mulher número”, daquelas a quem Ana de Castro Osório pretendia dar voz, foi morta por volta do meio-dia e dez minutos do dia 13 de maio de 1911. É rigorosa a pena do amanuense do cemitério de Setúbal quanto à datação. Quanto ao resto, nada. Mariana do Carmo Torres, indigente, sem naturalidade conhecida nem família que reclamasse o corpo, foi a enterrar a 15 de março, na campa 199, pouco passava das duas da tarde. Fim da história. Ah, supõe-se que teria 42 anos. Ou assim.

Carolina. Outra dignidade terá tido Fialho de Almeida, o Dr. Demónio, quando lhe abriram cova um dia antes, a 14 de março de 1911, no cemitério de Cuba. Fialho é o homem charneira dos tempos conturbados da viragem do século. Da decadência, da mudança de regime, do alastrar da peste e da fome, da antecâmera da Primeira Grande Guerra. Do desnorte e do medo… nos céus deste Portugal à deriva, a longa cauda do cometa Halley, iluminava o fim dos tempos, ainda com mais intensidade do que o ultimato britânico ou o regicídio do Terreiro do Paço. É neste turbilhão de desordem e de incerteza e de desarranjo que poderia ter nascido Carolina, “A Ruiva”. Oficialmente na cabeça de Fialho de Almeida. Hipoteticamente, onde os demais costumam acabar: num cemitério. No caso concreto, o dos Prazeres. Carolina, órfã de mãe, filha de coveiro, “mulher ninguém”, é a mais pura (e também a mais extremada) das figuras-síntese das lutas feministas de Ana de Castro Osório. Ou a reencarnação ficcional de todas as Marianas Torres deste mundo. Cresceu sozinha entre a morgue, onde dormia, e a taberna fronteiriça, onde o pai enxugava copos de bagaço. Aprendeu a ler nos epitáfios de mármore. Despertou para a sexualidade observando e tocando os defuntos masculinos que aguardavam autópsia sobre o lajedo. Poderia ter feito número na fábrica de tabaco de Alcântara, ter arranjado partido, filhos, um qualquer casebre onde os amontoasse… preferiu seguir os conselhos de uma vizinha (quiçá) menos recomendável. É a puta da vida!

Paulo Barriga

Ficha técnica

Público-alvo: M/6

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